Padre António Vieira
António Vieira (português europeu) ou Antônio Vieira (português brasileiro) (Lisboa, 6 de Fevereiro de 1608 — Salvador, 18 de Julho de 1697), mais conhecido como Padre António Vieira ou Padre Antônio Vieira, foi um religioso, filósofo, escritor e orador português da Companhia de Jesus.
Uma das mais influentes personagens do século XVII em termos de política e oratória, destacou-se como missionário em terras brasileiras. Nesta qualidade, defendeu infatigavelmente os direitos dos povos indígenas combatendo a sua exploração e escravização e fazendo a sua evangelização. Era por eles chamado de “Paiaçu” (Grande Padre/Pai, em tupi).
António Vieira defendeu também os judeus, a abolição da distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos, perseguidos à época pela Inquisição) e cristãos-velhos (os católicos tradicionais), e a abolição da escravatura. Criticou ainda severamente os sacerdotes da sua época e a própria Inquisição.
Na literatura, seus sermões possuem considerável importância no barroco brasileiro e português. As universidades frequentemente exigem a sua leitura.
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A Arte de furtar
[…] E digo que este mundo é um covil de ladrões, porque, se bem o considerarmos, não há nele coisa viva que não viva de rapinas: os animais, aves e peixes, comendo-se uns aos outros se sustentam; e se alguns há que não se mantenham doutros viventes, tomam seu pasto dos frutos alheios que não cultivaram, com que vem a ser tudo uma pura ladroeira. Tanto que até nas árvores há ladrões, e os elementos se comem e gastam entre si, diminuindo-se por partes, para acrescentar cada qual as suas. Assim se portam as criaturas irracionais e insensíveis e as racionais ainda pior que todas, porque lhes sobeja a malícia, que nas outras falta, e com ela trata cada qual de se acrescentar a si. E como o homem de si nada tem próprio, claro está que, se os acrescenta, muitos hão-de ser alheios.
E de todo este discurso nada é conforme à lei da natureza, a qual quer que todas as coisas se conservem sem diminuição de alguma. Nem a lei divina quer outra coisa, antes lhe aborrecem tanto ladrões que, do céu, do paraíso e do apostolado, os desterrou. E a este último desterro se acrescentou forca; e note-se que a tomou o réu por sua mão, sem intervir nisso sentença de Justiça, para nos advertir o castigo que merecem ladrões e como não devem ser admitidos nem tolerados nas Repúblicas.
[…] A maior dificuldade está no conhecimento deles, porque, como o ofício é infame e reprovado por Deus e pela natureza, não querem ser tidos por tais, e, por isso, andam todos disfarçados; mas será fácil dar-lhes alcance, se o dermos a suas máscaras, que são as artes de que usam. Destas faço aqui praça e lhas descubro todas, mostrando seus enganos como em espelho e minhas verdades como em teatro, para fazer de tudo um mostrador certíssimo das horas, momentos e pontos em que a gazua destes piratas faz seu ofício. Não ensina ladrões o meu discurso, ainda que se intitula Arte de Furtar, ensina só a conhecê-los, para os evitar.
Todos têm unhas, com que empolgam, e nas unhas de todos hei de empolgar, para as descobrir por mais que escondam; e será tão suavemente que ninguém se doa. Vai muito no modo e no estilo: a pílula amargosa não causa fastio, se vai dourada; e para que este Tratado o não cause, irá prateado, com tal têmpera que irrite mais a gosto que a moléstia. (VIEIRA, p.30-31)
CAPÍTULO I
Como para furtar há arte, que é ciência verdadeira
E se os ladrões não tiverem arte, busquem outro ofício; por mais que a este os leve e ajude a natureza, se não alentarem esta com os documentos da arte, terão mais certas perdas que ganhos, nem se poderão conservar contra as invasões de infinitas contrariedades que os perseguem. E, quando os vejo continuar no ofício ilesos, não posso deixar de o atribuir à destreza de sua arte, que os livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos ou obrigando-a que os largue e tolere, porque até para isso têm os ladrões arte. Assim se prova que há arte de furtar; e que esta seja ciência verdadeira é muito mais fácil de provar, ainda que não tenha escola pública, nem doutores graduados que a ensinem em universidade, como têm as outras ciências.
[…] De todo este discurso se colhe, com certeza, que a arte de furtar é ciência verdadeira porque tem princípios certos e demonstrações verdadeiras para conseguir seus efeitos, posto que, por rudeza dos discípulos ou por outros impedimentos extrínsecos, não chegue ao que pretende. Mas, se o ladrão tem dom natural e é perito na arte, arma seus silogismos como rede varredoura, a que nada escapa. (VIEIRA, p.44-45)
CAPÍTULO II
Como a arte de furtar é muito nobre
[…] E para que não engasgue algum escrupuloso nesta proposição, com a máxima de que não há ladrão que seja nobre, pois o tal ofício traz consigo extinção de todos os foros da nobreza, declaro logo que entendo o meu dito segundo o vejo exercitado em homens tidos e havidos pelos melhores do mundo, que no cabo são ladrões, sem que o exercício da arte os deslustre, nem abata um ponto do timbre de sua grandeza.(VIEIRA, p.48-49) […]
CAPITULO III
Da antiguidade e professores desta arte
Aqui entram os ladrões com a sua arte, alegando que, muito antes do primeiro homem, a exercitaram espíritos mais nobres. Mas, deixando pontos que nos ficam além do mundo, antes de haver homens — de que só tratamos —, falemos das telhas abaixo, que é o que pertence à nossa esfera. E em dando nos primeiros professores, colhemos logo a antiguidade desta arte; e, da nobreza daqueles e antiguidade desta, faremos o cômputo que buscamos. Mas, como se professa às escondidas, será dificultoso achar os mestres. Ora não será, porque não há quem escape de discípulo e os discípulos bem devem conhecer seus mestres. Na matrícula desta escola não há quem se não assente. Já o disse a el-rei nosso senhor, que é este mundo um covil de ladrões, porque tudo vive nele de rapinas: animais e aves e peixes — até nas árvores há ladrões. E agora digo que é uma Universidade em cujos gerais cursam todos os viventes, geralmente. Tem esta Universidade só duas classes, uma no mar, outra na terra. No mar dizem que leu de prima Jasão aos primeiros argonautas, quando passou à ilha de Colchos e furtou o velo de ouro, tão defendido como celebrado; e destes aprenderam os infinitos piratas, que hoje em dia coalham esses mares com a proa sempre nas presas que buscam. Na terra, dizem os antigos que pôs a primeira cátedra Mercúrio e que foi o primeiro ladrão que houve no mundo e, por isso, o fizeram Deus das ladroíces.Bem se vê a sem-razão desta idolatria, pois não pode haver maior cegueira que conceder divindade ao vício.Mas por pior tenho a que vemos hoje em muitos homens obrigados a conhecer este erro que têm a rapina por sua deidade, pondo nela sua bem-aventurança, porque dela vivem. […]
E como não há arte que se aprenda sem mestres, que vão sucedendo uns a outros, tem esta alguns muito sábios, e sempre os teve. E como não há escola onde se não achem discípulos bons e maus, também nesta há discípulos que podem ser mestres, e há outros, tão rudes, que nem para maus discípulos prestam, porque logo os apanham.
[…]
E temos averiguado que os professores desta arte são todos os filhos de Adão e que ela é tão antiga como seu pai. Mas de tanta antiguidade e progenitores ninguém me infira serem nobres os professores desta arte, nem ser ela ciência verdadeira, porque as ciências devem praticar algum fim útil ao bem comum, e esta arte só em destruir toda se emprega. Contente-se com ser arte, assim como o é a magia. E em seus artífices ninguém creia que pode haver nobreza, pois o vício nunca enobreceu a ninguém, porque por natureza é infame, e ninguém pode dar o que não tem.(VIEIRA, p.52-53)
CAPITULO V
Dos que são ladrões, sem deixarem que outros o sejam […]
Ladrões há piores que estes animais e são, como eles, os poderosos. Todos são como os leões que não deixam que outros animais se cevem na sua presa, e nenhum como os açores, que largam para outras aves a presa de que tiraram proveito. Não admitir companhia no trato de que se pode tirar proveito é ambição e é interesse a que podemos dar nome de furto. E é lanço muito contrário ao natural dos ladrões, que gostam de andar em quadrilhas e terem companheiros e serem muitos, para se ajudarem uns aos outros; mas isto é em ladrões mecânicos e vilões de trato baixo; há ladrões fidalgos, tão graves que se querem sós e que ninguém mais sustente o banco; vê-se isto por essas ilhas e conquistas e também cá no reino. […]
CAPÍTULO I
Como há ladrões que têm as unhas na língua […]
E para isso não há provimento que não desdenhem, nem despacho que não menoscabem. Até o que é nos outros paga de justiça fazem negociação de aderência, para levarem a água ao seu moinho e fazerem cano das minguas
alheias para as enchentes próprias, de que andam sequiosos. […](VIEIRA, p. 225)
CAPÍTULO XXXVII
Dos que furtam com a mão do gato
Ladrões há dos quais podemos dizer que têm mais mãos que o gigante Briareu, porque lhes não escapa conjunção, lugar e tempo. Como se tiveram mil mãos, à dextris e à sinistris, não erram lanço. E isto vem a ser furtar com mãos próprias, que não é muito; mas furtar até com as alheias é destreza própria desta arte, que vence na malícia e sutileza de todas as artes. Diz Lactâncio Firmiano que a maior maldade que comete o demônio é a de tomar corpos fantásticos para cometer abominações, porque não pode haver maior malícia que se despir uma criatura do seu próprio ser e vestir-se da natureza alheia, saindo-se de sua esfera para poder mais ofender a Deus. Tais são os homens ladrões que se ajudam de mãos alheias. Saem-se de sua esfera e vão mendigar nas alheias modos e instrumentos com que mais furtam. Não se contentar um ladrão com duas mãos, que lhe deu a natureza, e com cinco dedos, que lhe pôs em cada uma, armadas com muito formosas unhas, e ir buscar mãos alheias e emprestadas, para mais furtar, e poupar as suas para outros lanços — é o sumo da ladroíce.[…] (VIEIRA, p. 229)
CAPÍTULO LX
Dos que furtam com unhas políticas […]
Todos falam na política, muitos compõem livros dela e no cabo nenhum a viu, nem sabe de que cor é. E atrevo-me a afirmar isto assim porque, com eu ter pouco conhecimento dela, sei que é uma má peça e que a estimam e aplaudem como se fora boa, o que não fariam bons entendimentos se a conheceram de pais e avós, tais que quem lhos souber mal poderá ter por bom o fruto que nasceu de tão más plantas. E para que não nos detenhamos em coisas trilhadas, é de saber que no ano em que Herodes matou os inocentes, deu um catarro tão grande no diabo que o fez vomitar peçonha e desta se gerou um monstro, assim como nascem ratos e matéria putridi, ao qual chamaram os críticos “Razão de Estado”, e esta Senhora saiu tão presumida que tratou de casar, e seu pai a desposou com um mancebo robusto e de más manhas, que havia por nome “Amor-Próprio”, filho bastardo da primeira desobediência. De ambos nasceu uma filha a que chamaram Dona Política. Dotaram-na de sagacidade hereditária e modéstia postiça. Criou-se nas cortes de grandes príncipes, embrulhou-os a todos, teve por anos a Maquiavel, Pelágio, Calvino, Lutero e outros doutores desta qualidade, com cuja doutrina se fizeram tão viciosa que dela nasceram todas as seitas e heresias que hoje abrasam o mundo. E eis aqui quem é a senhora Dona Política.
E para a termos por tal, basta vermos a variedade com qu falam dela seus próprios cronistas que, se bem advertimos, cada qual a pinta de maneira que estamos vendo que leva toda a água a seu moinho. […] “Mínguas de outros são meus acrescentamentos. Sou obrigado a me conservar ileso e não estou seguro tendo junto de mim quem me faça sombra e, para nos livrarmos deste soçobro, demos-lhe carga, tiremos-lhe a substância.” E para isso estende as unhas, que chamam políticas, armadas com guerra, ervadas com ira e peçonha de inveja que lhe ministrou a cobiça; e nada deixa em pé que não escale e meta a saco.
“Este reino é meu e esta província é o menos de que se trata.” Os impérios mais dilatados e opulentos são pequeno prato para estas unhas, e o direito com que os agarram escreve o outro com poucas letras, sem ser Bártolo, na boca de uma bombarda, e vem a ser: Viva quem vence. E vence quem mais pode, e quem mais pode tenha tudo por seu, porque tudo se lhe rende. E fica a Política cantando a gala do triunfo, e sua mãe Razão de Estado rindo-se de tudo, como grande senhora, e seu pai Amor-Próprio logrando próis e percalços*, e seu avô o Diabo recolhendo ganâncias, embolsando a todos na caldeira de Pêro Botelho*, porque fizeram do céu cebola e deste mundo paraíso de deleites, sendo na verdade labirinto de desassossegos e inferno de misérias em que vem dar tudo o que nele há, porque tudo é corruptível.
Este é o ponto em que a Política errou o norte totalmente, porque tratou só do temporal sem pôr a mira no eterno, aonde se vai por outra esteira que tem por roteiro dar o seu a seu dono e a glória a Deus, que nos criou para o buscarmos e servirmos com outra lei muito diferente da que ensina a Política do mundo. E lá virá o dia do desengano, em que se acharão com as mãos vazias os que hoje as enchem da substância alheia.[…](VIEIRA, p.327-329)
CONCLUSÃO E REMATE DO DESENGANO VERDADEIRO
[…] E eu ponho aqui remate a este tratado, que intitulei Arte de Furtar, porque descobre todas as traças dos ladrões, para vos acautelar delas. Aqui vos ponho patente este espelho, que chamo de enganos, para que nele vejais os vossos e vos emendeis, conhecendo sua deformidade. Este é o teatro das verdades; se as conhecerdes e seguirdes representareis melhor figura no deste mundo. Mostrador é de horas minguadas, para que, fugindo-as, acheis uma boa, em que vos salveis. Também é gazua geral que, se bem se ocupou até aqui em abrir, melhor saberá fechar; chave é que fecha e abre; se usardes bem dela, fechareis para não perder e abrireis para ganhar. Verdadeiramente é chave mestra, que vos ensinará a verdadeira arte com que se abrem os tesouros do céu, os quais lograreis quando menos usurpardes os da terra. (VIEIRA, p. 380)